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O X da influência


"Tres", de Roberto Bolaño, leia trecho abaixo

... os livros falam entre si

Umberto Eco

No ensaio Borges e a minha angústia da influência, Eco ressalta que mais do que a influência direta entre dois autores (A e B), há sempre forças literárias e históricas que se posicionam acima deles, formando mais um ponto (X) na cadeia. A triangulação entre A, B e X chamamos de “cultura”, “cadeia de influências precedentes” ou, na preferência do teórico e ficcionista italiano, “universo da enciclopédia”. I Em 1896, Marcel Schwob (1867-1905) publica Vidas Imaginárias, costumeiramente reunido em um volume única com A Cruzada das crianças, no qual recria a partir de diversos pontos de vista uma história do século XIII na qual um grupo de crianças cruza a pé a Alemanha e a França em direção a Jerusalém. Nas Vidas imaginárias, como bem avisa o título, ele traça perfis de figuras históricas ou inventadas. A receita é dada pelo apresentador de recente edição em português, Marcelo Jacques de Moraes: “Vale esclarecer que Schwob jamais inventa inteiramente as narrativas que as compõem, trata-se de reescrever a reinterpretar textos mais ou menos antigos, relatos e documentos recolhidos em sua vasta cultura”. Ou seja, Schwob vai diretamente a X no triângulo de Eco. No próprio prefácio que escreveu para seus perfis, ele justifica a realização do material: “A arte é contrária às ideias universais, descreve apenas o individual, deseja apenas o único. Não classifica, desclassifica”. Entre os perfilados, quatro piratas: William Phips, Capitão Kid, Walter Kennedy e Major Stede Bonnet. II Jorge Luis Borges (1899-1986), como afirma Eco em seu artigo, “usou a cultura universal como instrumento de jogo”, isto é, seu negócio era também o X. E ele conhecia a obra de Schwob. Em 1949 escreve o prefácio da edição argentina de A Cruzada das crianças. Não tenho ideia de quando Borges conhece a obra do francês, mas ainda na década de 30 o argentino publica as biografias de História universal da infâmia, que chama de “exercício de prosa narrativa” no prólogo à primeira edição (1935), no qual atribui o livro às suas leituras de Robert Louis Stevenson (1850-1894), autor de O médico e o monstro, e G.K. Chesterton (1874-1936), autor das aventuras de Padre Brown, ambos contemporâneos de Schwob, o que deixa claro como o X do triângulo funciona. Ah, entre os perfis, o de uma pirata, a Viúva Ching. III Leitor de Schwob e de Borges, o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) publica em 1996, ainda sem tradução no Brasil, La literatura nazi en América, no qual conta biografias de escritores fictícios de todo o continente, todos ligados à ultradireita ou simpatizantes do autoritarismo. A tensão entre ficção e história, que o apresentador de Schwob nota em sua obra, retorna completamente nos relatos do chileno: ainda que os biografados sejam ficção, sua atração e dedicação a autoritarismos e totalitarismos mostra-se bem concreta.

Schwob é um dos autores que aparecem na série de poemas em prosa de Bolaño Un paseo por la literatura, também inédito em português, no qual descreve sonhos nos quais aparecem variados escritores. Schwob está no sonho 49. A tradução é minha:

49. Sonhei que nas diligências que entrava a saíam de Civitavecchia via o rosto de Marcel Schwob. A visão era fugaz. Um rosto quase translúcido, com os olhos cansados, apertado de felicidade e dor.

O chileno, assim, faz literatura a partir de sua própria enciclopédia, fazendo do ponto X do triângulo das influências a matéria-prima de sua obra. Referências Marcel Schwob. A Cruzada das crianças / Vidas Imaginárias. Tradução Dorothée de Bruchard. Introdução Marcelo Jacques de Moraes. São Paulo: Hedra, 2011. Umberto Eco. Borges e a minha angústia da influência. In: Sobre a literatura. Ensaios. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003. Jorge Luis Borges. Marcel Schwob. A Cruzada das crianças. In: Prólogos, com um prólogo de prólogos. Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (1ª edição 1975) Jorge Luis Borges. Historia universal de la infamia. Buenos Aires, Argentina: Emecé, 1954 (1ª edição 1935). Roberto Bolaño. La literatura nazi en América. Barcelona, Espanha: Seix Barral, 2008 (1ª edição 1996). Roberto Bolaño. Un paseo por la literatura. In: Tres. Barcelona, Espanha: Acantilado, 2009 (1ª edição 2000).

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