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A oficina de escrita do padre Inácio ou a dança dos gêneros literários

... o texto ficcional, em vez de dar as costas à realidade, a dramatiza e metamorfoseia...

Luiz Costa Lima


Em 1614, o livro Dom Quixote não tinha nem dez anos. Sua publicação em 1604 é considerada por muitos o evento inaugurador do romance moderno, forma literária que iria tornar-se dominante na segunda metade do século XIX. Para fins deste encontro de livros que é a Estante, tenhamos em mente que os relatos que vão aparecer nas próximas linhas foram escritos antes dessa trajetória de quatrocentos anos de ascensão e domínio do romance.


I

Quando ainda não se escreviam romances

Em 1614, era publicada Peregrinação, uma “obra sem lugar”, o relato de Fernão Mendes Pinto, “um pária aventureiro, no meio de nobres e funcionários”, em busca de riqueza na Índia durante as conquistas portuguesas.


As aspas são de Luiz Costa Lima, teórico e professor da Literatura, em O Redemunho do Horror. As Margens do Ocidente, livro em que trata da escrita de Mendes Pinto como “inominável”, obra que não se integra “por completo em nenhum campo discursivo legitimado em sua época”.


O próprio título, Peregrinação, é herdeiro – ensina Luiz Costa Lima – “da crônica medieval e da peregrinação da alma a Deus”, mas não foi escrito em tais padrões. À própria empreitada de Mendes Pinto resta muito pouco de Medieval. Por já estar fora de centro, seu relato é até tido por sátira. Parte do projeto expansionista português, realiza-se quando o mundo já está na era moderna, cuja outra marca é a imprensa de Gutenberg que permite ao relato do português ser publicado em livro.


II

As cartas da Companhia de Jesus


É nesse contexto expansionista-colonial português que, menos de cem anos antes, a ordem religiosa Companhia de Jesus espalha missionários pela Europa, Ásia, Extremo Oriente, África e América do Sul. Extremamente influente desde sua criação em 1534, na década seguinte já seguia em caravelas por todas as partes. Para manter a coesão de pensamento, bem como trocar experiências sobre a missão de evangelização, adota-se o contínuo envio de cartas, que são copiadas e distribuídas simultaneamente por todos os continentes.

“A correspondência epistolar era a coluna vertebral do corpo inaciano. Missionários espalhados pelo globo mandavam cartas para Roma, que eram rapidamente copiadas e distribuídas pelas missões de modo que todos soubessem o que todos faziam em lugares tão distantes quanto o Japão, o congo, a Índia e o Brasil”, conta Sheila Moura Hue, doutora e professora de Língua Portuguesa, em Primeiras cartas do Brasil 1551-1555. Escrevia-se muito, somente o criador da ordem, Inácio de Loyola, assinou 6.815 missivas entre 1524 e 1556.


Para além de seus objetivos estratégicos de manutenção da coesão e troca de informações, as cartas vão com o tempo descrevendo hábitos, circunstâncias, eventos, impressões sobre as línguas e modos dos povos originários. Usualmente lidas para uma plateia ouvinte, formada por religiosos, colonos e gente da terra, as cartas acabam ganhando um público fiel, ávido por “experiências, as aventuras, os êxitos e as dificuldades enfrentadas pelos missionários em lugares diferentes e exóticos”. As que mais faziam sucesso, conta a professora, eram as do Congo. Em uma carta que escreveu da Bahia, Manuel da Nóbrega, clama por novidades do país africano, assim como esperamos hoje por uma nova temporada de nossa série preferida.


Mas o próprio Nóbrega, chefe da missão em terras brasileiras, recebe em 1553 uma reclamação sobre o formato e a escassez das cartas que saíam de nossas terras. Em nome do padre Inácio, o secretário da ordem Juan Polanco envia instruções sobre o que as cartas deveriam conter, um verdadeiro manual de escrita com orientações para contar o número de missionários e da população, de fiéis e de infiéis, onde atuam e o que fazem em cada local, inclusive o que comiam, bebiam e como se vestiam; descrição do clima, localização geográfica e a caracterização dos habitantes, suas roupas, comida e hábitos.


O sucesso das cartas era tamanho que acabaram sendo reunidas em livros. Sheila Hue dá informações sobre compêndios impressos em Coimbra em 1551 e 1555, além de volumes específicos sobre o Brasil ou o Japão, por exemplo. Outra medida do público alcançado é que esses volumes acabaram sendo traduzidos para o espanhol, italiano, francês e alemão.


Na dedicatória da tradução italiana publicada em 1559, pode-se verificar até a estratégia editorial de destacar o empreendimento jesuítico como uma grande aventura, como se fosse uma chamada jornalística ou mesmo um trailer de filme anunciando que se encontrará “no presente volume coisas verdadeiramente maravilhosas e grandes, conhecerá os ferozes e horríveis costumes daqueles povos, as qualidades daquele país e a infinita bondade e paciência daqueles reverendos padres, com suas fadigas, que guiados pelo Espírito Santo, tudo deram pela conversão daqueles gentios à nossa direita e santa fé...”.


Na conclusão, a pesquisadora trata também dessa dança dos gêneros:


“Além de fontes históricas da maior importância, de nos revelarem o panorama do que ocorria 50 anos após o descobrimento, além do seu aspecto puramente informativo, as cartas nos mostram os jesuítas como escritores de um gênero nascente, moderno. A objetividade, a simplicidade da redação, a emoção, a temática contemporânea, a intenção de divulgar amplamente os fatos ocorridos pouquíssimo tempo antes, essas características fazem das cartas jesuíticas exemplares únicos entre os textos publicados no século XVI (...). Esse embrião do jornalismo moderno, misto de documento histórico texto literário, impressiona ainda hoje não só pela força e brutalidade de suas informações como pelo vigor de sua expressão”.


III

Tarrafa Literária

Sheila Moura Hue é uma das convidadas da Tarrafa Literária de 2020, que será transmitida de 20 a 30 de novembro nos canais do festival no Youtube e no Facebook. Converso com ela e Vivien Kogut Lessa de Sá na mesa Os ingleses nos mares do Brasil, que será transmitida no dia 24, às 18 horas. O assunto vem do título do livro publicado pelas duas: Ingleses no Brasil: Relatos de viagem 1526-1608. Parceiras de pesquisa já há algum tempo, é delas também As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens, cujo próprio título evoca a estratégia narrativa com que esses relatos eram divulgados pela Europa.


Em Os livros e as pessoas, mesa com Jorge Carrión e Miguel Sanches Neto que abriu na sexta-feira, dia 20, a programação para adultos, o mediador Rodrigo Savazoni, ao citar uma passagem de Jorge Luis Borges, fez um comentário sobre como os relatos do argentino são realizados no limite entre os gêneros.


O apagamento das fronteiras entre os gêneros é uma constante da literatura – quase uma regra – desde as vanguardas dos anos 20 e 30 do século XX. Dando como exemplo o próprio Borges, temos o conto A Aproximação a Almotásim, escrito como se fosse uma resenha de um livro com esse mesmo título publicada em 1935 na revista Sur, o que causou uma enorme procura pela obra que não existia. O conto sai em livro apenas no ano seguinte, como parte de História da Eternidade.


Ainda que no caso das vanguardas o borramento dos limites seja intencional, os exemplos dos relatos acima apontam para uma história da Literatura que vai se moldando pelo choque constante dos padrões de escrita, um conflito sem fim.


Falamos no início da hegemonia alcançada pelo romance ao longo do século XIX. Para se ter uma ideia dessa luta, não só o romance luta contra os demais gêneros (um exemplo disso são as relações de semelhança e diferença entre os termos em inglês “romance”, “novel”, “history” e “story”), mas também a luta dentro do próprio gênero. Tendo os romances publicados na Inglaterra como referência, o geógrafo italiano Franco Moretti mostra em A Literatura vista de longe: Gráficos, mapas e árvores como houve uma batalha de 44 subgêneros pela preferência dos leitores, entre os quais o gótico, o romance epistolar, o romance histórico, até que o romance naturalista/realista assumisse a hegemonia dentro do próprio gênero, ele mesmo atingindo a hegemonia em relação às demais formas de escrita.


Pós escrito

Além de Ingleses no Brasil, faço a mediação no dia 30 da mesa Literatura como reconstrução, com Leonardo Padura e Maria Valéria Rezende. escreverei na Estante sobre esses dois encontros, bem como sobre o que encontrar interessante nos demais debates.


Acompanhe no link o o canal do Festival Tarrafa Literária.


Estante

Luiz Costa Lima. O Redemunho do Horror. As Margens do Ocidente. São Paulo: Planeta, 2003.


Sheila Moura Hue. Primeiras cartas do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006.


Sheila Moura Hue e Vivien Kogut Lessa de Sá. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2007.


Sheila Moura Hue e Vivien Kogut Lessa de Sá. Ingleses no Brasil. Relatos de viagem 1526-1608. São Paulo: Chão Editora, 2020.


Jorge Luis Borges. Aproximação a Almotásim. In: História da Eternidade. In: Obras Completas I. São Paulo, Globo, 1998.


Franco Moretti. A Literatura vista de longe: Gráficos, mapas e árvores. Tradução Anselmo Pessoa Neto. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2008.


Abaixo, a mesa Os ingleses nos mares do Brasil:

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