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A aventura de ler


Escrevia a primeira versão desse texto de estreia da Estante do Atanes em sua nova casa movido por gosto e empolgação de voltar a colaborar para a imprensa tratando de livros e literatura. Os parágrafos iam fluindo até que fui à cozinha preparar uma refeição. Durante a comida, a luz acaba e percebo imadiatamente que escrevia, escrevia e não havia salvado o arquivo. Religo o computador e nenhum traço do texto. Dessa desventura tão comum por qual tantos e tantas já passamos, fico com o consolo que este agora já é o segundo texto (acabei de salvá-lo) que preparo para o blog, que será atualizado às quintas-feiras.


Quem já correu os olhos por meus escritos irá reconhecer os temas de sempre, ainda que em uma nova volta da espiral: os poemas, ficções e relatos sobre o porto e a cidade de Santos, traduções de poesia em espanhol e um olhar para a literatura latino-americana como um espelho de nossas sociedades, além de outras preferências e encontros. Assunto é também essa ideia de poesia e ficção como espelho, que busco tratar como aqueles espelhos do Cassino do Monte Serrat, que mais distorcem do que refletem com exatidão, pois a verdade dos textos ficcionais não está no que dizem sobre o real. Está, e isto varia de obra para obra, em um lugar para o qual esses textos nos levam e de onde podemos fazer perguntas e levantar questões.


Talvez seja uma temeridade anunciar isto no primeiro (ou segundo) texto, mas não escrevo bem, isto é, me explico: minhas orações são repletas de frases adversativas, que vão condicionando, contrapondo, desdizendo ou mesmo reafirmando o antes dito de outro modo. Parágrafos, travessões, pontos e vírgulas, dois pontos, todos os sinais mobilizados em função de pensar a arte literária. Se tenho algum projeto, é o de fugir dos chavões e das afirmações petrificadas. Mais que matéria-prima para "belos" textos, os livros que passarem pela Estante do Atanes serão usados como um machado para quebrar o gelo do lugar comum.


Isso não quer dizer que os textos serão difíceis, pelo menos não é minha pretensão, mas enfrentarei assuntos difíceis. Talvez erre de tom em algum momento, mas nunca tratarei leitores e leitoras como incapazes ou sem interesse de acompanhar questões teóricas sobre Literatura ou sobre como funcionam os efeitos da ficção. Caberá a mim achar o modo adequado. O simples caminha ao lado do complicado e às vezes se interpenetram.


Anoto isso tendo na cabeça alguns exemplos de clássicos do século XX: por um lado, a escrita límpida e de textos curtos de Jorge Luis Borges, de uma clareza tal que chega a disfarçar os jogos de lógica e complexas ideias filosóficas levantadas pelo autor argentino; por outro, a técnica do fluxo de consciência adotada por James Joyce e Virginia Woolf (cada qual de sua maneira e parece que a inglesa não curtia muito o modo como o irlandês resolvia os mesmos problemas sobre os quais ela se debruçava).


Em suas obras mais ambiciosas escrevem os dois de forma não linear, desconexa, com múltiplas perspectivas, buscando mimetizar como os pensamentos acontecem na mente das personagens, saltando de uma ideia ou imagem para outra como ocorre na realidade de nossas mentes todos os dias de forma natural há milênios, mas que tornou-se um desafio para escritores e escritoras especialmente na primeira metade do século XX, talvez por causa da psicanálise, então ainda bem recente, talvez por causa do esgotamento do formato realista do romance do século XIX, ou provavelmente por causa de ambos.


Assim, dizer que Joyce é chato ou leitura para iniciados, como é costume, diz mais sobre as limitações de quem faz tal afirmação do que qualquer outra coisa. Ele é um autor respondendo às questões de seu tempo. E digo isso deixando claro que ainda não terminei o "Ulysses", tentei já duas vezes e apanhei bastante, umas 400 e tantas páginas em cada tentativa, e provavelmente haverá uma terceira, nunca por obrigação, mas pelo gosto de aventura. De Virginia Woolf, estou lendo o "Passeio ao Farol" e ando tristíssimo pelo destino de uma das personagens e o sentimento se dá justamente devido à maneira em que a autora elabora o texto.


Nesse país em que se afirma que livros didáticos são amontoados de palavras; nesse país em que já há algum tempo acadêmico é sinônimo de chato (muitas vezes de forma merecida); nesse país em que universitário é qualitativo de música de balada; enfim, é nesse país, aqui desde minha estante, que faço um convite e um desafio: desconfiem das afirmações do senso comum (que costuma divergir do bom senso) sobre livros. Ler é um gesto de coragem, é embarcar - para fecharmos com uma metáfora portuária - em uma aventura munidos apenas dos remos e velas de nossas mentes e corações.


E não esqueçam do Machado!

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