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De esquecida a clássico, a trajetória do romance Navios Iluminados


A primeira edição (José Olympio, 1937)

Em 2005, após apresentar um seminário sobre o romance portuário Navios Iluminados durante as aulas de História da Cultura e Cultura Popular, o professor Nicolau Sevcenko me perguntou se não seria relevante descobrir – ou pelo menos levantar algumas hipóteses – sobre as razões de a obra de Ranulpho Prata, publicada em 1937 pela José Olympio, não ter entrado no cânone dos clássicos brasileiros da literatura do século 20. Esse texto tratará de levantar algumas questões sobre a inserção da obra portuária no sistema literário nacional, na expressão de Antonio Candido.

No início de 1938, um mês após o lançamento, começam a aparecer as primeiras críticas ao livro. Navios Iluminados chegou a ser considerado pelo crítico da Folha da Manhã, Rubens Amaral, um romance que precisava ser escrito sobre o porto de Santos, destacando assim o pioneirismo da obra em dar expressão literária ao universo do cais.

Vapores Iluminados, o nome do livro na Argentina

Um indício da importância da obra aparece em 1941 com a publicação da versão em espanhol do livro, Vapores Iluminados, publicado em Buenos Aires pela Editorial Claridad em uma coleção de romancistas brasileiros, entre os quais Coelho Neto, Lúcio Cardoso e Jorge Amado. No prefácio (leia a tradução aqui), o tradutor Benjamin de Garay, responsável pelas versões em espanhol de Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, compara a busca por trabalho no porto de Santos à promessa do Eldorado tão presente na cultura hispano-americana.

Mas Ranulpho Prata morre logo em seguida, em 1942, e não pôde cuidar da trajetória de sua mais importante obra. Esse é um dos motivos que Primo Viera, professor de filosofia da Universidade Católica de Santos, diz ter colaborado para que Navios Iluminados não causasse eco nos principais círculos literários do país. Vieira, que traçou em 1962 o perfil Ranulpho Prata, quase esquecido, lembra também que o autor, de forte inclinação católica no final da vida, era arredio e não costumava frequentar as rodas literárias além do convívio de alguns amigos.

Edição de 1946, com prefácio de Silveira Bueno

A primeira reedição brasileira do romance sai pelo Clube do Livro em 1946. A edição traz uma apresentação de Silveira Bueno, intelectual, autor de dicionários, na qual destaca a formação médica de Prata como fundamental para seu estilo: “O laboratório do médico educara os olhos do artista para tudo ver na medida exata da verdade, embora a fantasia do escritor atenuasse um pouco a crueldade dos episódios. Por isto, as páginas de Ranulpho Prata são vívidas, reais, sentindo-se a emoção da vida que delas se desprende, ora queimando como acontece a quem se debruça a contemplar um corpo em febre, ora enregelando como sucede aos que de perto observam as coisas mortas.”

Edição pela Coleção Contemporânea

A edição seguinte é lançada no Rio de Janeiro em 1959 pelas Edições O Cruzeiro. É o 20º volume da Coleção Contemporânea, que já havia publicado Lucio Cardoso, Lygia Fagundes Telles, Josué Montelo e Lêdo Ivo. A orelha diz o seguinte de Ranulpho Prata: “É um escritor sempre voltado para o destino humano, consubstanciado em dor e alegria, amor e sofrimento – e tanto sabe surpreendê-lo em sua expressão individual como em seu sentido comunitário, no qual o homem, ligado aos seus semelhantes, é o elo de uma cadeia de lutas e aspirações comuns.”

Uma edição feita na terra em que se passa a trama do livro

Em 1996, no centenário de nascimento do escritor, nova edição do livro é publicada pela Prefeitura de Santos em conjunto com a Editora Scritta. Também em texto publicado na orelha, o prefeito da cidade à época, David Capistrano, faz novo comentário em torno da capacidade descritiva de Prata: “Com sua sensibilidade e seu gosto pela descrição, Ranulpho Prata nos deixou um expressivo painel da sociedade santista, que, apesar do tom marcadamente social, não se esgota na denúncia, trabalhando com êxito o retrato psicológico, a ambientação detalhista e a crítica de costumes”. Apesar do enaltecimento da capacidade narrativa e descritiva de Prata em Navios Ilimuinados, o livro nunca esteve na órbita dos principais estudiosos da literatura do país. Em 1951, por exemplo, Otto Maria Carpeaux, um dos maiores críticos do Brasil, publica sua Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, sem qualquer menção à obra ou ao seu autor. A terceira edição, de 1964, chegaria às 3.538 referências bibliográficas, nesta obra que traça os principais nomes, publicações e histórias literárias produzidas no Brasil. Nenhuma delas trata do Navios Iluminados.

Nelson Werneck Sodré, outro dos maiores historiadores do país, também não achou necessário incluir o Navios Iluminados em sua História da Literatura Brasileira, publicada pela primeira vez em 1938. A terceira edição, ampliada, de 1964, continuava sem qualquer referência ao romance de identidade portuária. E destino diferente não teve a obra em outro livro de pesquisas, o Pequeno dicionário de literatura brasileira, organizado por Massaud Moisés e José Paulo Paes, cuja edição de 1983 traz verbetes sobre 350 autores, nenhum deles Ranulpho Prata.

Esta ausência do autor das listas e histórias literárias é bem traduzida no título de um artigo que busca Um espaço para Prata na literatura nacional, publicado por Paulo Carvalho Neto na Revista Interamericana de Bibliografia, editada em Washington, Estados Unidos, em 1974, ano que passou como professor visitante e pesquisador em universidades norte-americanas. Outro texto histórico é de 1990, de Sonia Maria Ramos Pestana, é uma monografia de pós-graduação em História que busca as imagens de Santos na obra de Prata.

Além de meus textos sobre o romance publicado na coluna Porto Literário desde abril de 2005, a coisa começa a mudar figura mesmo em 2006, com a publicação de Uma história do romance de 30, de Luís Bueno. Ao invés de selecionar autores e obras que considere os mais representativos do período, Bueno optou por registrar o maior número possível de obras e relacioná-las com o momento histórico a cada momento daquele período, trazendo assim matizes para uma imagem que a crítica costuma considerar monocromática, isto é, avança o conhecimento sobre a literatura dos anos 30 para além do regionalismo nordestino e da literatura proletária.

Ao aplicar esta nova metodologia, o pesquisador consegue traçar novas análises sobre o período. É o que faz com o próprio Navios Iluminados ao tratá-lo como precursor de Vidas secas, de Graciliano Ramos, lançado em 1938 também pela José Olympio: "Navios Iluminados é um dos mais significativos romances do final da década. Embora não tenha tido nada o sucesso de Os Corumbas – e em grande medida porque o romance social entusiasmava menos nesses tempos de dúvida que ele próprio contribui para definir –, o romance de Ranulpho Prata tem todas as suas qualidades, acrescidas da escrita madura de um autor já veterano, que conhecia bem seus meios de expressão. Embora não seja um livro de todo desconhecido – já teve três edições, a última de 1996 – permanece menos lido do que deveria ser".

Em 2008, defendo minha dissertação de mestrado em História Social, História e Literatura no Porto de Santos: o romance de identidade portuária "Navios Iluminados" (ver aqui), em que trato do uso da ficção como fonte documental para contar a História das relações entre o Porto de Santos e a cidade, pesquisa que se amplia em 2013 com a publicação do livro Esquinas do Mundo: Ensaios sobre História e Literatura e partir do Porto de Santos, que deu origem a este site.


Mais do que a crítica literária, foram esses trabalhos históricos que levaram a obra a ser reeditada em 2015 pela Edusp e pela editora laboratório da Escola de Comunicação e Artes (ECA), dentro da coleção Reserva Literária, voltada para o resgate de obras que não receberam a atenção que merecem, ao lado de obras como os Contos Cariocas, de Artur Azevedo. Em resenha publicada em A Tribuna, o crítico Alfredo Monte destacou a atualidade da obra: "... a escassez de demanda de mão-de-obra, fenômeno que se repete e confere inesperada (para não dizer agourenta) atualidade a Navios Iluminados; nele, os personagens vivem sem o anteparo das leis trabalhistas (consolidadas sob o governo getulista), agora vivemos um momento dramático em que elas são ameaçadas, postas em xeque. E a vaga nas docas como sonho empregatício ganhou, com o desenrolar da História, uma pátina de ironia". A edição reúne algumas imagens do autor e de outras edições do livro, traz um perfil do autor e uma apresentação da obra, além de destacar esse resgate : "Paulo Carvalho, no ensaio Um lugar para Ranulfo Prata, que acompanha uma importante 'contribuição bibliográfica' aos estudos do autor e sua obra, observa o descompasso entre a reputação obscura e o valor do escritor que, embora lido e favoravelmente acolhido por críticos como, entre outros, João Ribeiro, Alceu Amoroso Lima, Agripino Grieco e Nelson Werneck Sodré, fora esquecido por 'tantos outros responsáveis por darem forma orgânica ao patrimônio literário brasileiro', mas que 'não obstante, incluem e resenham obras de alguns autores que não resistiriam a um estudo comparado com a produção de Ranulfo Prata". E, em seguida: "Se houve injustiça, ela foi em parte reparada pela dissertação de mestrado História e Literatura no Porto de Santos: o romance de identidade portuária 'Navios Iluminados', de Alessandro Alberto Atanes Pereira, e pelo destaque dado à obra do escritor sergipano em Uma História do Romance de 30 , de Luís Bueno, onde o estilo de Navios Iluminados é comparado, 'em suas linhas gerais e a despeito das inevitáveis diferenças' ao de Graciliano Ramos.

Referências:

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

Ranulpho Prata. Vapores Iluminados. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1941.

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. São Paulo: Clube do Livro, 1946.

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1959.

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Santos: Prefeitura de Santos, 1996.

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. São Paulo: Edusp/ Com Arte, 2015.

Luís Bueno. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora Unicamp e Edusp, 2006.

Nelson Werneck Sodré. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964 (1ª edição: 1938).

Otto Maria Carpeaux. Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1964 (1ª edição: 1951).

Massaud Moisés e José Paulo Paes (organizadores). Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.

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