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Preferiria não.

Publicado originalmente no Santaportal.


Basta que um único homem seja irracional para que os outros o sejam e também todo o universo. Melville imaginado por Borges


I Talvez ninguém conheça exatamente todo o alcance da frase "Preferiria não fazer", o bordão de Bartleby no conto de Herman Melville (1819-1891), publicado em 1856 em Londres e Nova York. Recém empregado em um escritório, Bartleby insistentemente recusa tarefas, ele só quer um canto. Conheço a tradução acima da frase original “I would prefer not to” feita por Cássia Zanon para a editora LP&M.; "Preferiria não", mais ríspido, é a versão usada na encenação de Denise Stoklos (foto); e fuçando na rede, surpreendo-me e simpatizo com "Acho melhor não", de Irene Hirsch, editada pela Ubu. Parece-me soar mais como se fala. "Acho melhor não" são palavras de hoje para essa recusa expressa no livro. Jorge Luis Borges (1899-1986), em seu estilo límpido para ideias abstratas ou filosóficas, sugere que Kafka (1883-1924) e seus labirintos da burocracia (penso em O processo, 1925) projetam uma "luz ulterior" sobre o conto. O autor tcheco de expressão alemã, diz Borges, "aprofundaria" o gênero que o norte-americano criara em Bartleby - O Escrivão: "o das fantasias da conduta e do sentimento". II Passando de argentino para chileno, Roberto Bolaño (1953-2003) afirma que Bartleby é o "exilado absoluto" por preferir não se ir. E é sobre um conto de Bolaño que quero falar, Henry Simon Leprince, de 1997. Leprince é um nome "todo o contrário" do que sugere: "da classe média baixa, carece de dinheiro, de uma boa educação, de amizades convenientes". E claro, é um escritor fracassado, seus poemas recebem julgamentos ruins feitos por poetas ruins e nem são lidos pelos bons poetas. As editoras parecem odiá-lo. Essa é a situação literária de Leprince em 1940, quando a França é ocupada pelo nazismo. Da diversidade anterior de escolas literárias francesas, os escritores passam a se agrupar em dois grupos antagônicos: os que pensam em resistir - inclusive os "por delicadeza" - e os que pensam em colaborar, "subdivididos, eles mesmos, em múltiplas seções, todas sob o influxo gravitacional dos sete pecados capitais". Enquanto esse grupo vai assumindo editoras e a direção de revistas, Leprince compreende que é com eles que sempre havia caminhado pelo "mesmo território". Após um tempo, ele é convidado a publicar seus poemas e a escrever para essas revistas, oferecem-lhe um cargo de direção no jornal para o qual trabalha. Mas ele diz não. Bolaño nos apresenta o "preferiria não" de Leprince dá de forma sutil, ao final de um parágrafo: "Nessa manhã [a do convite] entende por fim algumas coisas. Nunca até então havia tido noção de seu papel tão baixo na pirâmide da literatura. Nunca até então sentiu-se tão importante. Após uma noite de reflexão e de exaltação, rejeita a oferta". Como cada ato, ou recusa, tem suas consequências, Leprince acaba por aproximar-me a pessoas ligadas à resistência e passa a realizar missões "delicadas", porém sem muita importância: o deslocamento de escritores, muitos entre os poetas ruins que consideravam ruins seus poemas e aqueles que o ignoravam. "Sua presença provoca uma rejeição intraduzível, inclassificável. Sabem que está a seu lado, mas no fundo se negam com todas suas forças a aceitá-lo. Percebem, talvez, que Leprince esteve durante muitos anos no purgatório das publicações pobres ou canalhas e sabem que dali não se salva pessoa ou bicho ou que somente salvam-se aqueles que são muito fortes e brilhantes e bestiais". E mais à frente: "Ninguem se molesta a saber o que escreve o escritor que lhes salvou a vida". Ou ainda: "Em uma noite protege um poeta surrealista perseguido pela Gestapo e que terminará seus dias (não por culpa de Leprince) em um campo de concentração na Alemanha, o qual se despede sem lhe dar sequer um obrigado". Ao contrário da recusa difusa de Bartleby, Bolaño dá um novo rumo ao gênero das fantasias de condutas: Leprince rejeita algo concreto e sabe que não haverá recompensa. Esse é um dos momentos em que vemos uma ideia-força de Bolaño: o valor; não aquele que se confunde com preço, mas valor na acepção em espanhol que significa também "coragem" (ser valente é agir com valor). III O conto faz parte do livro Chamadas Telefônicas, publicado no Brasil em 2012 pela Companhia das Letras, 15 anos após o lançamento na Espanha pela Anagrama. É essa demonstração de valor que separa Leprince das personagens de Bolaño reunidas em A literatura nazista em América, sua obra anterior, de 1996 (publicada no Brasil somente em 2019), uma série de perfis inventados de escritores e escritoras do norte ao sul do continente americano, reacionários e conservadores, alguns criminosos, outros soldados. Há inclusive um filósofo brasileiro que escreve refutações aos iluministas. Eles não disseram "preferiria não". Esse livro talvez seja o mais agudo na tensa relação entre ficção e história que costura a obra do chileno. Um caso emblemático é o perfil Carlos Ramírez Hoffman, o Infame, sobre o poeta e piloto da aeronáutica chilena que comete atrocidades contra outros artistas (principalmente mulheres), registra suas matanças em fotografias e as expõe como se fosse arte de vanguarda (essa história é desenvolvida posteriormente na forma de romance em Estrela Distante). Outro caso é o do mineiro Amado Couto, autor de romances policiais que entra no Esquadrão da Morte e participa de sequestros e torturas, sem parar de pensar no que a literatura brasileira precisava. Couto faz parte de uma série de personagens do livro movidos mais por ressentimento do que ideologia, ou ressentimento e ideologia em partes iguais (Leprince é também um ressentido, como são ressentidos os bons poetas salvos por ele). Entra no Esquadrão da Morte após seu livro de contos não ter sido aceito por editora nenhuma. Admirador e invejoso de Rubem Fonseca, chega a planejar seu sequestro: “Pensou um dia, enquanto esperava com o carro em um descampado, que não seria má ideia sequestrar e fazer alguma coisa com o Fonseca. Disse isso para os chefes, e eles escutaram. Mas a ideia não foi levada a cabo.” É assim também com o guatemalteco Gustavo Borda, baixinho, moreno, de cabelo escuro e ralo que em suas ficções científicas cria protagonistas altos, loiros, de olhos azuis que formam a tripulação de naves espaciais que recebem nomes tais como Nova Berlim, Nova Hamburgo, Nova Frankfurt. Desprezado e humilhado por toda a vida, tanto no país Natal como em Los Angeles, para onde se muda, assim responde a escolha por personagens alemãs: “Me fizeram tantas cachorradas, me cuspiram tanto, me enganaram tantas vezes que a única maneira de seguir vivendo e seguir escrevendo era me trasladar em espírito a um lugar ideal... À minha maneira sou como uma mulher no corpo de um homem...” Outro caso é o do haitiano Max Mirebalais, plagiador, que cria heterônimos plagiadores, cada um em um estilo próprio. Um desses heterônimos é metade haitiano, metade alemão, Max Von Hauptman. “Ser um poeta nazista e não renunciar a certo tipo de negritude pareceu entusiasmar Mirebalais”.

Agora, um perfil curto:

“Otto Haushofer, Berlim, 1871-Berlim, 1945. Filósofo nazista. Padrinho de Luz Mendiluce e pai de várias teorias sem cabimento: a Terra oca, o Universo Sólido, as civilizações primigênias, a tribo ariana interplanetária. Suicidou-se depois de ter sido violentado por três soldados uzbeques bêbados". Otto está inserido na seção do livro chamada Epílogo para monstros, um catálogo dedicado a personagens secundárias, editoras e publicações ligadas à ultradireita do continente. Ele é um coadjuvante na biografia de Luz Mendiluce, filha de Edelmira Mendiluce e irmã de Juan Mendiluce Thompson, a família argentina que compõe a primeira seção do livro, Os Mendiluce. Luz nasce em Berlim em 1928, durante viagem da família. Seu batizado reúne “a nata da intelectualidade argentina e alemã” durante uma cerimônia de três dias, conta Bolaño no perfil da mãe. Ainda um bebê de colo, conhece Hitler: “Em 1929, enquanto o crack mundial obriga Sebastián Mendiluce [o marido de Edelmira] a retornar a Argentina, Edelmira e seus filhos são apresentados a Adolf Hitler, que pegará a pequena Luz no colo e dirá: “É sem dúvida uma menina maravilhosa”. Fotos são feitas. O futuro Führer do Reich causa na poetisa argentina uma grande impressão.” A foto com Hitler, emoldurada em prata e presidindo o salão de sua casa, lhe “acompanhou toda sua vida”, até 1976, quando morre em Buenos Aires. O batizado de Luz por um filósofo nazista – LUZ, olha só o nome! – revela, e outros perfis reforçam essa ideia, toda uma genealogia entre o nazismo alemão e o autoritarismo violento da América Latina. Não apenas em nossas ditaduras, mas também em parte do pensamento de artistas, intelectuais e também entre a gente. Assim pode-se ler também o romance póstumo 2666, de 2003, em que tal relação se dá em outro nível, no qual intelectuais europeus especialistas em um autor alemão recluso conhecem o horror latino-americano na forma do assassinato de centenas de mulheres em Santa Teresa, no Deserto de Sonora, durante uma viagem ao México. A violência americana como nosso próprio mal. IV Em uma entrevista, Bolaño responde sobre o que o deixa aborrecido: "O discurso vazio da esquerda. O discurso vazio da direita já dou por certo". Essa frase ilumina também um tipo de personagem que vem se tornando cada vez mais alvo de críticas que aparece no Literatura nazista... e posteriormente em outras de suas histórias: o, por falta de uma expressão melhor, esquerdomacho (vale aqui destacar que a próprio entrevista foi dada para e revista Playboy em um encontro conduzido por uma jornalista, Mónica Maristain). Em outro dos perfis do livro, conhecemos a mexicana Irma Carrasco, católica e monarquista. Ela acredita que o México deve voltar a fazer parte da coroa espanhola. Casa-se em 1935 com Gabino Barreda, "estalinista semiclandestino e don Juan", considerado um "arquiteto brilhante, idealista, com grandes projetos para as novas cidades do continente". Lindo, né? Não. Após alguns meses, passa a bater em Irma diariamente: "Barreda costuma depreciá-la publicamente, a ela e a sua família, a quem chama de 'carolas filhos de uma quenga' ou 'carne podre de paredão' na frente de amigos ou desconhecidos. Recebe a "mais brutal" das surras em 1937,em Madri, durante o bombardeio da cidade pela aviação franquista. O abuso segue por décadas, até quase sua morte, e cito, para fechar, o dia em 1947 em que apanha na frente de amigos durante um jantar ao defender a "honradez e as conquistas do regime franquista". Epílogo Escrevi muito hoje sobre autores homens, ainda que também sobre a violência que cometem. Mas as traduções aqui citadas vieram ao português por causa de uma encenadora e duas tradutoras. Também a citação de Borges em português é a da versão de Josely Vianna Baptista (já os trechos do chileno são traduções feitas a partir dos originais em espanhol aqui da estante). E para uma história da tradução no Brasil, principalmente de obras de língua inglesa sugiro as postagens e comentários de Denise Bottmann, ela mesma tradutora de nomes como Virginia Woolf, Peter Burke, Terry Eagleton e Katherine Mansfield, entre outros. Mesmo que eu "prefira não" escrever sobre homens mais do que mulheres, minha Estante acaba ainda por reproduzir as relações de força da sociedade. Cabe a mim estar atento para modificar essa e outras diferenças, diferenças que serão reduzidas não só por um equilíbrio numérico, mas também pelo destaque ao peso e influência de autoras. Por isso, cito Beatriz Sarlo, crítica e ensaísta argentina, fundamental para minha leitura de Bolaño e sobre como venho tratando as relações entre História e Literatura. É dela a seguinte frase que guia meus estudos: "A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo". Bônus A poesia de Bolaño ainda não foi publicada em livro em português, ainda que se possa encontrar alguma coisa na rede. Em homenagem ao valor e à coragem, trago aqui uma tradução de: MINHA CARREIRA LITERÁRIA Rejeições de Anagrama, Grijalbo, Planeta, com toda a certeza também de Alfaguara, Mondadori. Um não de Muchnik, Seix Barral, Destino... Todas as editoras... Todos os leitores... Todos os gerentes de vendas... Sob a ponte, enquanto chove, uma oportunidade de ouro para ver a mim mesmo: como uma serpente no Polo Norte, mas escrevendo. Escrevendo poesia no país dos imbecis. Escrevendo com meu filho nos joelhos. Escrevendo até que cai a noite com um estrondo dos mil demônios. Os demônios que hão de me levar para o inferno, mas escrevendo.

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