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O prefácio de Navios Iluminados na Argentina


Três anos após ter sido publicado no Brasil pela editora José Olympio, Vapores Iluminados é o nome que em 1940 o romance Navios Iluminados, de Ranulfo Prata, recebe ao ser lançado em Buenos Aires, Argentina.

Com direitos para toda a América Latina, a editora Claridad publica a obra com um subtítulo inexistente no original: Vapores Iluminados. La novela de los obreros marítimos é o sexto número da coleção Biblioteca de Novelistas Brasileños, iniciada em 1937 com Rey Negro, de Coelho Neto, seguida por Amazônia Misteriosa, de Gastón Cruls; Morro de Salgueiro, de Lucio Cardoso; Garimpos, de Herman Lima, e Mar Muerto, de Jorge Amado.

Em Modernidade Periférica: Buenos Aires 1920 e 1930, a ensaísta Beatriz Sarlo conta que Claridad foi um empreendimento possível graças ao aumento das taxas de alfabetização e escolaridade e à massificação da educação secundária, com a consequente formação na Argentina de um público leitor que garantisse a sobrevivência desse tipo de editora. Ela cita uma reportagem de Roberto Arlt – Hacen falta libros baratos – em que o dono da Claridad afirma ter impresso 1 milhão de exemplares ao longo de 10 anos em edições com tiragens de 10 mil e chegando até 25 mil exemplares. Nessas duas décadas, como também por aqui (ainda que com taxas bem menores de alfabetização), é quando se diversificam jornais e revistas, que passam a contar também com os serviços de telégrafos com as notícias das guerras, das conquistas dos polos e dos voos de longa duração, além das novidades dos filmes e estrelas de cinema como sugere o título da coleção de textos jornalísticos de Arlt sobre cinema: Notas sobre el cinematógrafo.

Esses seis primeiros livros da série (não obtive mais informações sobre toda a coleção) foram traduzidos e receberam prefácios de Benjamín de Garay, também diretor de toda a empreitada. Garay tem um importante papel na divulgação da literatura e do pensamento brasileiro entre o público hispano-americano, sobretudo na Argentina. Além dessa coleção, traduziu alguns títulos da Biblioteca de Autores Brasileños Traducidos al Castellano, publicada pelo Ministerio de Justicia e Instrucción Pública: Los sertones de Euclides da Cunha (1938), Mis memórias de los otros de Rodrigo Octavio (1940); Casa grande & Senzala de Gilberto Freyre (1942), e San Pablo en el siglo XVI. Historia de la Villa de Piratininga de Alfonso de E. Taunay (1947), além de El conventillo de Aluísio Azevedo (1943) por outra editora (mais sobre seu papel na difusão cultural entre os dois países neste artigo de André da Costa Cabral).

A tradução

Garay apresenta o cais de Santos pela metáfora de El Dorado, a cidade de ouro, mito da conquista de riqueza da colonização espanhola que se apresenta “sob formas novas e inesperadas”, em que, no caso específico da obra de Prata, renova-se sob a “prosaica realidade contemporânea”.

Agora as multidões ávidas por fortuna já não correm em posse da cidade mítica, onde as casas se revestem de metais preciosos e onde as crianças brincam nas ruas com pepitas de ouro ou pedras de carbonatos e diamantes. Não. Vão aos grandes portos, de onde saem e aonde chegam todas as riquezas do mundo, nas barrigas dos grandes navios iluminados, que nas noites se balançam sobre as águas do mar como fantásticos palácios de fadas. Para lá vão em busca de trabalho, à conquista de dinheiro, incitados por um tenaz afã de bem-estar. Uns triunfam, porém os demais caem triturados pela engrenagem sem piedade da sociedade moderna.

Destaco também do prefácio, traduzido na íntegra a seguir, o comentário do tradutor sob a formação médica do autor como componente essencial da narrativa do livro. Ele qualifica Prata como um autor “de raça, sereno, complexo em sua simplicidade, sagaz com naturalidade, sugestivo, vigoroso e terno, que escreve porque tem uma mensagem que faz chegar ao mundo atormentado em que o toca viver”. Para Benjamín de Garay, Prata leva para as letras sua experiência de médico, mas sem “exibição de erudição fácil”.

Ao prefácio, então, que ele leve mais leitores a Navios Iluminados.

 

À Maneira de Prefácio de Navios Iluminados

Benjamin de Garay

É de Renan a afirmação de que “os conquistadores não teriam empreendido suas aventuradas expedições se não tivessem esperado encontrar o ‘El Dorado’”. O que vale tanto quanto sustentar que o sonho, a ilusão, que se apresenta às vezes sob a aparência do mais sórdido interesse, move o homem à ação, constitui a dinâmica da história, a medula dos acontecimentos.

Em nosso século positivista e cético, o mito do El Dorado, em suas características antigas, dissipou-se das mantes. Mas não para desaparecer, mas para se apresentar sob formas novas e inesperadas. É o que nos mostra este apaixonante e, mais que apaixonante, profundo, humano, enternecedor romance de Ranulfo Prata.

Ranulfo Prata é uma das mais altas figuras intelectuais do Brasil. Produz livros pelo mesmo processo natural que faz a árvore brindar seus frutos. Isto é, trata-se de um escritor de raça, notável, complexo em sua simplicidade, sagaz com naturalidade, sugestivo, robusto e terno, que escreve porque tem uma mensagem para fazer chegar ao mundo atormentado em que lhe cabe viver. À semelhança de Manuel Díaz Rodríguez, o grande romancista e crítico venezuelano desaparecido, Ranulfo Prata leva para as letras sua cultura e sua experiência de médico, mas não em uma exibição de erudição fácil, nem de pose cientificista, mas no modo peculiar de aprofundar os problemas da dor humana.

Em Vapores Iluminados, renova o mito de El Dorado, que acabou por descobrir sob a prosaica realidade contemporânea. As multidões ávidas de fortuna já não correm mais atrás da cidade mítica, onde as casas são revestidas de metais preciosos e onde as crianças brincam nas ruas com pepitas de ouro ou seixos de carbonatos e diamantes. Não. Agora vão para os grandes portos, de onde saem e onde chegam todas as riquezas do mundo, nas adegas dos grandes navios iluminados, que pelas noites balançam sobre as águas do mar como fantásticos palácios de contos de fadas. Para lá vão, em busca de trabalho, à conquista do dinheiro, aguilhoados por um tenaz afã de bem-estar. Uns triunfam, mas os demais caem triturados pela engrenagem desapiedada da sociedade moderna.

O tema é grandioso, sob suas modestas aparências. E Ranulfo Prata o desenvolve com maestria, em um estilo em que a arte do escritor se manifesta na precisão e na simplicidade das frases. Nada de mesquinharias literárias. Nada de pompas retóricas. Nada de inchaços românticos.

Esta prosa é como a atmosfera: não deixa perceber sua presença e o leitor somente vê os fatos ferverem e se precipitarem para elaborar o drama.

E enquanto a simples história de uma vida humilde vai se desenvolvendo, sobre o pano de fundo aparece pintado ao vivo, com suas características inconfundíveis, o quadro de um setor da sociedade brasileira, no momento de ingressar com passo firme e decidido na era industrial de sua história.

Esse momento da vida brasileira é de interesse extraordinário. A agricultura que poderíamos chamar medieval, por sua técnica rudimentar e seus métodos primitivos, deixa de ser economicamente produtiva. Tanto a seca, tanto as chuvas excessivas acabam com a colheita. A falta de transportes e o alto custo de comercialização provocam a depreciação dos frutos da agricultura. Gerações de agricultores vivem o drama obscuro, silencioso e torturante sobre a terra ao mesmo tenta bendita e hostil, às vezes mãe, às vezes madrasta. Há um surdo rancor nas almas gerado por aquele estado de coisas; mas também subsiste o irresistível apego ao sítio santificado pelo esforço familiar através das gerações e dos anos. Porque o agricultor tem algo de árvore. Raízes invisíveis, de índole psicológica, atam-no à terra, e daí nasce a vocação à imobilidade, a permanência sobre seu edifício, berço e sepulcro de seus antepassados, berço e sepulcro de seus filhos.

Esta fidelidade à terra se manifesta com mais força nos velhos, impregnados até a cabeça pelo espírito conservador da classe agrária. A reação contra a miséria, contra a infecundidade do trabalho, opera-se nos jovens. Por isso é a juventude dos campos que rompe com o solo, a que se lança pelos caminhos da aventura, tomando o rumo das cidades industriais. Produz-se o que os sociólogos chamam de proletarização das massas, isto é, a transformação do agricultor em operário nas fábricas. A cidade atarefada exerce uma estranha fascinação sobre os jovens do campo; veem nas urbes fabris um teatro apropriado para lutas mais frutíferas e para lá vão em uma penosa peregrinação até a fortuna sonhada, que geralmente resulta ilusória.

Porque é maior o número de fracassados que o dos que triunfam. As doenças e a miséria causam estragos na legião de operários que incessantemente se renovam. Mas estes fracassos e estes triunfos não são produzidos sem que cada qual tenha vivido seu mínimo drama.

Ranulfo Prata soube presentear todo este processo da sociedade brasileira em seu romance, pintando-o com sóbrios traços no que poderíamos chamar, usando termos pictóricos, um vasto afresco social, admirável pela proporção das figuras, pelo realismo do ambiente e pela ardente vitalidade das almas.

Buenos Aires, dezembro de 1940

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