Sobre portos e guitarras
Os portos, depois também os aeroportos, são daquele tipo de lugares que contam histórias. Não só. Muitas histórias começam nos portos. Os contos de náufragos e as aventuras de piratas, mas também fugas, perseguições, tiroteios, explosões que envolvem criminosos, policiais corruptos, policiais honestos, ou espiões e agentes secretos. Em outros gêneros, os armazéns garantem aos narradores amplos espaços para as máquinas, equipamentos e equipe de apoio de vilões milionários inteligentíssimos e/ou cientistas malucos. Ambiente comum das histórias sob o cenário da colonização e imperialismo ocidental nos séculos 18 e 19, é a movimentação dos portos – e seu controle – que simboliza e garante a realização do próprio imperialismo.
Desse caldo narrativo partem também as histórias de iniciação, reais e ficcionais. É a viagem que faz aos 26 anos pela América do Sul na década de 1830 que “iniciou” Charles Darwin na variedade de vida no planeta, experiência fundamental para que desenvolvesse sua teoria da adaptação evolutiva nos anos seguintes. Ou Herman Melville, desembarcado de um baleeiro em Lima, Peru, na costa do Pacífico, entre 1843 e 1844, de onde conheceu o branco dos Andes antes de publicar Moby Dick em 1851.
Outra dessas viagens de iniciação teve lugar em 1960, quando do porto da inglesa Liverpool partem cinco jovens nascidos durante a Segunda Guerra para fazerem uma temporada de apresentações em Hamburgo, onde clubes, bares e casas noturnas contratavam bandas de rock que tocassem para o público cosmopolita que a cidade portuária alemã reunia. O historiador britânico Eric J. Hobsbawm já escreveu como o jazz – gênero norte-americano como o rock’n roll – era popular na Europa do entreguerras, apreciado tanto por jovens alemães quanto por franceses.
Os cinco rapazes eram os Beatles, crescidos com os discos de rock e blues dos Estados Unidos que chegavam ao porto. Naqueles dias Ringo Starr era só um conhecido que tocava em outra banda de Liverpool que percorreu também o circuito noturno de Hamburgo. No começo, praticamente trabalhadores braçais, John, Paul, George, Stuart Sutcliffe e Pete Best chegavam a tocar mais de oito horas por noite.
Esse episódio é narrado no filme Os cinco de Liverpool, cujo protagonista é Sutcliffe, que faz uma viagem dentro da viagem: em Hamburgo ele desenvolve suas habilidades como pintor e deixa o grupo para tentar a carreira artística nas artes plásticas e viver com a fotógrafa Astrid Kirchherr. É dela a ideia de trocar os topetes Elvis Presley do grupo pelas famosas franjas com que fariam sucesso em pouquíssimo tempo. O novo penteado (um trote vanguardista?) marca a iniciação do grupo na arte contemporânea, termômetro das transformações sociais dos anos 60 das quais o grupo acabou sendo um dos maiores ícones.
Foi também na cidade portuária alemã que eles conheceram o artista plástico Klaus Voorman, que em 1966 desenharia a capa do álbum Revolver em que as franjas de John, Paul, George e Ringo estão em primeiro plano e do emaranhado que se forma entre elas surgem novas imagens de cada um. Primeiro disco psicodélico do grupo, Revolver é recheado de efeitos de estúdio como as guitarras gravadas e tocadas de trás para frente, técnicas desenvolvidas pela música erudita desde os anos 50 (a Música Nova de Gilberto Mendes bebeu muito aí).
Essas relações dos Beatles com a vanguarda são uma das ocorrências propiciadas pelo cosmopolitismo da cidade alemã, um lugar em que um jovem com formação artística como Stu pudesse desenvolver seus talentos e conviver com outros artistas. Ele, Lennon e McCartney fizeram cursos de arte, assim como Keith Richards, Eric Clapton e Jimmy Page. Em um documentário sobre o grupo The Who, Pete Townshend diz que teve a ideia de quebrar guitarras em um desses cursos, durante palestra de um artista plástico alemão que incendiava suas pinturas em público após terminá-las.
A evolução já era marcante desde o Rubber Soul (1965), a e a inventividade aflora em canções como Nowhere man e If I needed someone, sobre a qual o próprio Gilberto Mendes fez o seguinte comentário quando o repórter Eugênio Martins a pôs para tocar durante uma entrevista: “Eu fui apresentado aos Beatles pelo meu filho de dez anos, que comprou na época o compacto de I Wanna Hold Your Hand. É uma das melhores épocas da música popular. As guitarras eram instrumentos de caminhoneiros americanos e os timbres que eles tiravam desses instrumentos horrorosos eram impressionantes. O Paul McCartney é responsável por todas aquelas harmonias.”
No estúdio, quem foi ponte (porto) para a música contemporânea erudita foi o produtor George Martin, ele mesmo um compositor que teve aulas com Stockhausen, um dos principais nomes da vanguarda musical europeia que deu origem à Música Nova alemã em torno dos cursos realizados na cidade de Darmstadt (de novo, os Beatles e a Alemanha). É essa troca que alimenta e dá vazão à inventividade e beleza de Revolver, ao experimentalismo psicodélico de Magical Mistery Tour e Sargent Pepper´s Lonely Heart Club Band, à música concreta Revolution 9, faixa do álbum branco de 1968 composta por John Lennon a partir da gravação de trechos de conversas, barulhos do trânsito, efeitos sonoros e transmissões de rádio, assim como o próprio Gilberto Mendes, que usa – além de orquestra, coro e público – quatro transmissões radiofônicas de partidas de futebol em sua peça Santos Football Music, do ano seguinte.
O grupo ainda lançaria Abbey Road (1969) e Let it be (1970), gravado anteriormente, volta ao básico e despedida doída. Abbey Road é um testamento. Distante da psicodelia, mais ainda explora a inventividade de compositores e músicos já maduros, no auge de sua capacidade técnica. Seus álbuns formam uma obra que teve os portos por alimento.
EPÍLOGO Nesse meio tempo em que os Beatles faziam suas gravações, um senhor vizinho lá no Macuco conta que estava chegando aos 18 anos e era estivador no Porto de Santos. Ele descarregava esses discos distribuídos pela indústria cultural no cais desta esquina do lado de cá do mundo, ponto das trocas internacionais assim como Liverpool e Hamburgo. As informações sempre chegam mais rápido aos portos. Devemos presumir que um disco sumia do lote e alguém o ouvisse em casa, sozinho, realmente sozinho, antes mesmo que os demais exemplares deixassem o porto rumo ao comércio.