A partitura flutuante de Flávio Viegas Amoreira
Escrevo de dentro do vazio refletido na luz do nada, não por metafísica ou qualquer abstração, mas simplesmente por ter feito a revisão de O vazio refletido na luz do nada (2015), livro de Flávio Viegas Amoreira pela editora Kazuá (pela mesmo editora o autor ainda lançou Desaforismos e tramas de metrô em 2016). Desta forma, impossível que este seja um texto objetivo (qual texto é?), busco evitar também o elogio hipócrita para aproveitar a perspectiva de dentro para refletir sobre sua obra.
Além de um ou outro erro de digitação, o que se pode dizer da "revisão" de um texto poético é que revisão não é o termo correto, ainda mais em uma escrita como a de Flávio, tributária do caudaloso rio inventivo de James Joyce (comparar não é equiparar), tomada pela invenção, junção e rearticulação de palavras, um tipo de escrita que temo ser ainda recebida como hermética ou difícil mesmo quase um século após os primeiros experimentos vanguardistas, uma rejeição já centenária (basta lembrar do episódio recente do maior vendedor de livros do Brasil ao comentar Ulysses).
Por que esse medo de ler como uma aventura? Por que não encarar os textos, principalmente os de invenção, com uma disposição de ler / decifrar / destrinchar / traduzir as imagens que eles nos sugerem? Como se o texto fosse uma partitura flutuante, um mapa rítmico.
Essa dimensão de partitura flutuante, de mapa rítmico – emprestada da tradutora e pesquisador argentina Delfina Muschietti – aparece de forma clara na poesia de Flávio. O maior indício está no uso do espaço antes do sinal de dois pontos, prática diluída por boa parte de sua obra anterior e que torna-se manifesta em O vazio refletido na luz do nada, um pequeno estranhamento que poderia soar como ruído para o leitor covarde, mas que é exemplo dessa partitura flutuante.
Como se o espaço anterior ao sinal fosse o silêncio após a música da palava anterior, silêncio esse que acaba nos dois pontos, momento que simultaneamente indica – por espelhamento – um outro silêncio, o espaço seguinte, aquele que antecede o da música da palavra à frente. Não seria tal pequenucha alteração, a simples digitação de um espaço a mais antes do sinal (esse espaço sem letra, um simples “toque” na linguagem da digitação) uma própria dimensão gráfica de um vazio refletido na luz do nada?
Outra manifestação desta partitura flutuante percebi no ritmo de plurais que vem e vão como ondas, como no exemplo no verso da seção Sampoema (uma linda ode a São Paulo publicada originalmente em 2008 em formato artesanal) que começa em “campos de piva”. Se falo ritmo, não me limito à métrica ou à técnica, mas ao que escreveu Octavio Paz: o ritmo da própria língua, da língua do poeta, deste ritmo de Flávio de ondas de plurais – ondas mesmo, porque vêm e vão. Logo na abertura de Sampoema, nos deparamos com o verso "lago anônimo de gozo e morte", no singular, que abre espaço para a beleza do verso seguinte: "a Paulista é praia de ondas com pressa de cimento", uma imagem que se abre na maré baixa com uma pequena ondulação de duas sílabas – a própria palavra ONDAS – no meio do verso; depois, um novo trecho em singular e uma forte onda que bate como ressaca na Ponta da Praia pelos plurais "alamedas / janelas...", mais um trecho seco e nova onda de "águas pútridas / córregos em transe / pirajuçaras". Se formos mais longe, os próprios sssss "ondeiam" as pretas palavras sobre o branco – a escrita como um tsunami gráfico sobre o papel.
Algo que me chama a atenção ao voltar a me aventurar pela escritura de Flávio é como ela parece – conscientemente ou não – manter-se afastada da ironia, tom tão comum, quase uma obrigação contemporânea. Não que seja avessa a ela, mas sabe a diferença da paródia para a ode. É uma poesia além / aquém do pastiche pós-moderno.
Por fim, a voz em primeira pessoa dá o tom mas não se impõe, sabe a si mesma como uma coisa a mais das coisas do mundo e que é das coisas do mundo que o poeta deve falar.