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Terra da liberdade, da caridade e da sordidez


Em tempos de orgulho pelos pertencimentos identitários, como se nascer em algum lugar fosse uma realização pessoal, vale lembrar que isso não nos exime do mal.

Testemunha da sordidez cometida por santistas foi o memorialista Nelson Salasar Marques. Nos textos sobre sua infância e juventude no bairro do Macuco ele lembra do clima de paranoia durante a segunda guerra mundial em que as pessoas se acusavam à toa de espionagem e conta o episódio de uma noite em 1943 (na memória errática, como são as memórias, Marques fala em 1942) em que caminhões do exército chegam ao bairro para levar à força toda a colônia de japoneses que habitava a região.

O memorialista descreve que as chácaras iam da Avenida Conselheiro Nébias pela Afonso Pena até a Ponta da Praia ("tudo era Macuco", todo um descampado cuja conquista - a construção dos chalés de madeira - Marques compara à das caravanas do Velho Oeste). Sítios e casas de toda essa região tornaram-se desabitadas na manhã seguinte, tratamento diverso do dado às colônias de alemães e italianos, os demais aliados do Eixo. Após o decreto do governo federal que motivou a remoção de milhares de pessoas transferidas do litoral do estado para o interior com o objetivo de diminuir o risco de espionagem. Apenas em Santos, foram 3 mil.

Reportagem de A Tribuna de 10 de julho de 1943 descreve que os japoneses tiveram ainda um tempo pequeno para de desfazerem de alguns bens em troca de dinheiro. "Quase todos proprietários de chácaras, eles puseram à venda quase tudo quanto possuíam. Vendiam a qualquer preço, pois não havia tempo para regatear". Na mesma edição, a polícia publicava um comunicado delegando à população a tarefa de cuidar das propriedades dos japoneses: "cada vizinho um vigilante atento".

Não foi isso o que aconteceu. De repente, o menino, o memorialista do final do século XX, viu seus vizinhos tornarem-se "saqueadores":

Eles vinham por trilhas de dentro dos capinzais e pareciam formiguinhas

Jornal da Noite, 10 de julho de 1943

obreiras. Eram homens, mulheres, crianças e até velhinhos e velhinhas de passos trôpegos, todos trazendo às costas os produtos roubados das casas dos japoneses, deixadas vazias e sem guarda à porta. Eram incansáveis. Centenas deles que iam e vinham carregando, a princípio, móveis, rádios, vassouras, roupas, galinhas, porcos e até cachorros e, mais tarde, o próprio produto das chácaras: machuchus, batatas e abóboras, tudo arrancado do solo. Eles desciam a Senador Dantas carregando pencas de batatas com as raízes à mostra e, em longas filas sinistras, as exibiam com orgulho de um troféu de batalha. Lembro-me de que alguns se esgueiravam envergonhados e desviavam o olhar.

O pequeno trecho é um registro de quanto a guerra foi realmente "mundial", tendo todo o globo por palco de ação (o historiador Eric Hobsbawn,por exemplo, mostra efeitos e repercussões da guerra em todos os continentes em A Era dos Extremos: O breve século XX). Tivemos vítimas aqui em Santos também, pessoas que perderam a cidade que adotaram e na qual seus filhos nasceram e cuja memória sumiu da cidade.

A memória do menino concentra em uma noite - aquela da qual foi testemunha - um processo de dias, como revela a consulta aos jornais daqueles dias lá no Novo Milênio, a Santospedia, de onde veio a imagem do Jornal da Noite que acompanha o trecho de seu texto.

Mas o valor da memória como registro histórico não é o da exatidão do documento objetivo (se houvesse algum), seu valor está nos rastros do que aconteceu e a vergonha e a arrogância fizeram esquecer. A memória de Salasar Marques é expressa na voz de um autor de peças e ficções em português, francês e inglês, além de ensaios e conferências publicadas. Além do tom geral do texto, vem daí a metáfora das incansáveis "formiguinhas obreiras" para os saqueadores. Formigas, tão familiares e tão devastadoras em sua fila "sinistra". Tom que segue pela enumeração dos objetos e víveres roubados e na frase final em que é identificado ainda um traço de vergonha.

A sordidez dos santistas, ainda que em escala bem menor, não é diferente do que vimos em A Pele, romance de Curzio Malaparte de 1949, em que relata a libertação de Nápoles pelo exército dos Estados Unidos. A comparação (nunca equiparação) se dá pelo uso da memória para o registro literário. O primeiro quer registrar suas memórias e usa a literatura para vivificá-las, torná-las vivas ao leitor. Malaparte, do mesmo caldo de memória individual, faz do romance uma sucessão de descrições sublimes e terríveis para as cenas terríveis que presenciou durante a Segunda Guerra, das quais o episódio em Santos é um aperitivo. Entre a opressão nazista e a ocupação norte-americana, e os bombardeios dos dois lados, a população local faz de tudo para salvar a própria "pele", inclusive a venda de seus filhos. Esse contraste entre a abjeção dos atos humanos durante a guerra e o tom solene da descrição é a nota predominante no livro, como nesta passagem do capítulo A virgem de Nápoles:

Contracapa de "A Pele"

Mas depois da libertação os homens tiveram de lutar para viver. É uma coisa humilhante, horrível, é uma necessidade vergonhosa lutar para viver. Só para viver. Só para salvar a própria pele. Já não é a luta contra a escravidão, a luta pela liberdade, pela dignidade humana, pela honra. É a luta contra a fome, é a luta por um pedaço de pão, por um pouco de lume, por um farrapo para cobrir os filhos, por um pouco de palha para estender o corpo. Quando os homens lutam para viver, tudo, até uma panela vazia, uma ponta de cigarro, uma casca de laranja, um côdea de pão seco apanhado no lixo, um osso esburgado, tudo tem para eles um valor enorme, decisivo. Os homens são capazes de todas as velhacarias para viver: de todas as infâmias, de todos os crimes, para viver. Por um pedaço de pão, cada um de nós está pronoto a vender a própria mulher, as filhas, a macular a própria mãe, a vender os irmãos e os amigos, a prostituir-se a um outro homem. Está pronto a ajoelhar-se, a arrastar-se pelo chão, a lamber os sapatos de quem pode matar-lhe a fome, a dobrar a cerviz sob o chicote, a limpar sorrindo a face onde lhe escarram: e tem um sorriso humilde, doce, um olhar cheio de uma esperança famélica, bestial, uma esperança espantosa.

Milan Kundera escreve que é um desafio para o pesquisador da Segunda Guerra usar a obra de Malaparte como fonte histórica, apesar de seu privilegiado acesso, como militar italiano, aos centros do Eixo. Suas descrições não buscam a objetividade do jornalista ou do historiador ou mesmo a verdade parcial do memorialista. Pelo contrário são sublimes. Nelas, a sordidez humana é milenar.

Referências

Nelson Salassar Marques. O Macuco e seu espírito pioneiro. In: Memórias de um mundo submerso. Santos: Editora Universitária Leopoldianum, 1995.

Curzio Malaparte. A Pele. Tradução Alexandre O'Neill. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira, 1964.

Milan Kundera. Um Encontro: Ensaios. Tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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