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Revita... o quê?


Nas primeiras páginas do romance Jacinto, o Sansão do Cais Santista, de Sergio Willians, Pedro, 18 anos, aluno do primeiro ano de Jornalismo, é levado de 2011 para 1905 por meio de um portal do tempo localizado em uma das torres da Bolsa do Café.

Lá no início do século passado, ele conhece um rapaz a quem o título se refere, um jovem estivador. Ainda sob o choque da viagem temporal, ele começa a perceber o deslocamento temporal ao reconhecer, novíssimos, os armazéns I e II do porto de Santos. Os dois conversam:

- Peraí. Mas pelo que me lembre esses armazéns 1 e 2 da faixa do Valongo deveriam estar caindo aos pedaços! Devem ter mais de 100 anos. E, que eu saiba, o tal projeto de revitalização do Valongo ainda não saiu do papel. - Revita... o que? Olha, meu amigo, você me salvou a pele, mas acho melhor ir embora. E acho que você deveria fazer o mesmo.

Considero o diálogo acima um destes nós pelos quais desvendamos as trama traçadas entre a ficção e a História. Neste nó , no qual um recurso ficcional, a viagem no tempo (sem levar em conta certas teorias da Física Teórica), permite, pelo efeito de contraste, imaginar aquele lugar, não diria recuperado, mas sim novo, como revela a naturalidade de Jacinto com a então recente paisagem urbana.

Daí a força da ficção: a realidade dos personagens nos faz imaginar aqueles armazéns como estavam poucos anos após terem sido construídos e então voltamos ao presente e trazemos esta imagem – que é nossa, individual, criada no momento da leitura – para compor o imaginário daquele lugar. Esta é a contribuição da ficção para o conhecimento sobre o mundo. E a singela pergunta de Jacinto – “Revita... o quê?” – traz tantos ecos urbanísticos, sociológicos e históricos sobre nossa cidade e suas relações com o porto.

O impacto das operações portuárias sobre a cidade é um tema vasto na literatura aqui produzida. Não só como cenário, mas como elemento narrativo mesmo. É o caso de A História dos Ossos (2005), de Alberto Martins, cuja trama se desenvolve a partir do início do processo de transformação do Cemitério do Paquetá em um pátio de contêineres. Exagero ficcional talvez, mas bem simbólico.

Já em Navios Iluminados, romance de 1937 que dá início ao ciclo de romances portuários que atavessa a virada do século XX para o século XXI, o controle de parte da cidade pelas operações portuárias é quase como o tema das entrelinhas, de tão entranhado o cotidiano dos personagens moradores do Macuco com a rotina de sirenes, embarques e guindastes. É como se o porto avançasse sobre Santos ou como se o bairro portuário pertencesse mais ao porto do que à própria cidade, tanto que o protagonista só deixa o local em condições especialíssimas.

Clássico de nossas letras, o livro é também iluminador de um momento importante da literatura nacional, os anos 30, quando o romance regionalista e a literatura proletária eram os gêneros mais desenvolvidos. Pelo próprio espaço portuário, local de trocas simbólicas além das econômicas, industrial, mas ao ar livre, o romance adquire um desenvolvimento híbrido entre os dois polos, colocando um retirante nordestino como estivador no cais de Santos.

Ateliê e obras de Fabrício Lopez

Uma das respostas da pergunta “revita... o quê?” passa pelo número 6 da Rua Visconde de Vergueiro, no Centro de Santos, um prédio residencial que não tem nada de histórico, mas ali os moradores têm como vizinho o ateliê do artista plástico Fabrício Lopez.

Quem percebeu o potencial dessa relação foi dupla Bineural MonoKultur, de Córdoba (Argentina), que participou do Festival Mirada de 2016 com o audiotour ficcional A Máquina da Tempo (novamente, a viagem no tempo). em que os participantes, com fones de ouvido, participam de uma experiência sonora onde a cidade é tomada como cenário para um percurso ficcional.

Essa narração fazia os participantes acompanharem pelas ruas do Centro Histórico Nuno, neto de um imigrante português que vem de São Paulo para Santos a negócios, o que lhe traz lembranças do avô. Andando pelas ruas do Centro, algo o impede de avançar com suas tarefas. Começa a sofrer “discronias”, saltos no tempo que o arremessam para o passado. Terão a ver com o favor que seu avô lhe pediu? Nuno deixa uma gravação para seu sócio, Marcelo, na qual o convida a seguir seus passos pelo Centro Histórico de Santos.

Participante do audiotour A Máquina do Tempo no ateliê de Fabrício Lopez

E, por meio das orientações dessa gravação, o audiotour levava os participantes até o ateliê de Fabrício, um antigo escritório de café, em que o mobiliário é aproveitado em uma das cenas principais da trama, o clímax, em que o participante é levado ao cofre para descobrir o segredo do avô de Nuno.

Que forma de apresentar ao público esse local tão importante para a resistência de uma cidade que vai se tornando cada vez mais uma "Dubai Dubrejo", no irônico epíteto do poeta Flávio Viegas Amoreira?

Essa convivência entre moradores e artistas promove a revitalização do Centro Histórico de uma forma que os cafés e restaurantes não conseguem, revitalização de dar vida outra vez a um lugar, reanimá-lo, obtendo algo que está além do tombamento ou da restauração arquitetônica. Esta é também uma das funções da arte.

Referências

Sergio Willians. Jacinto, o Sansão do Cais Santista . Santos, Fundo Municipal de Cultura, 2011.

Bineural Monokultur. A Máquina do Tempo. Audiotour, Mirada - 4º Festival Mirada. Sesc Santos, 2016.

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